Greves policiais: doutrinarismo X oportunismo

09/07/2011 09:43

TEORIA MARXISTA.
Publicado em 02.07.2011.

Enviado por *Paulo Souto, São Paulo.
Na esquerda existem aqueles que apóiam as greves policiais e os que são contra elas. Tanto a posição doutrinária – tipo a da LER e LBI – quanto a oportunista (PSTU, PSOL) justificam as suas posições com base no mesmo método metafísico das generalizações abstratas. Os primeiros consideram as polícias instituições estatais repressoras, por isso as suas greves não podem ser apoiadas. Os segundos, dizem que a revolução seria impossível sem dividi-las. Uns absolutizam o aspecto repressivo das polícias, outros transformam em regra absoluta a necessidade de dividi-las. Para eles não existe dialética materialista. O método dialético foi assim confrontado com a metafísica: “O pensamento marxista é concreto, quer dizer, considera todos os fatores decisivos ou importantes em torno de uma questão determinada, não somente em suas relações recíprocas, senão também em seu desenvolvimento. Não dissolve a situação do momento presente na perspectiva geral, torna possível a análise da situação presente em toda sua particularidade. A política começa precisamente com esta análise concreta. O pensamento oportunista, assim como o pensamento sectário, tem em comum o fato de extrair, da complexidade das circunstâncias e das forças, um ou dois fatores que lhes parecem ser os mais importantes – e que, de fato, às vezes o são – os isolam da realidade complexa e lhes atribuem uma força sem limites nem restrições” (Trotsky – Os esquerdistas em geral e os incuráveis em particular).

O caráter repressivo das polícias é uma caracterização que orienta a nossa política geral, mas não dispensa a “análise da situação presente em toda a sua particularidade”. A perspectiva geral nos diz que o aparato repressivo deve ser destruído, mas nada nos informa sobre as táticas para isso. Não se resolvem questões práticas com receitas gerais. O doutrinarismo, incapaz de uma análise concreta, para não cair em tentação, nega as táticas específicas baseadas numa análise concreta. Apesar do seu caráter repressivo geral, as diversas instituições policiais não são iguais nas suas particularidades: na sua composição, formação, recrutamento, nível salarial, etc. Nada disso é indiferente à nossa tática. Nesses aspectos, a polícia federal é diferente da polícia civil, que difere muito da polícia militar, que, por sua vez, não é igual ao exército. As táticas para a destruição dessas instituições nem sempre são as mesmas: a revolução socialista deve destruir o corpo de oficiais do exército, mas as polícias devem ser destruídas de conjunto.

As críticas abstratas sobre as greves policiais são um presente para o oportunismo. Este se dá ao luxo de apresentar uma análise capciosa como marxista. Esse é o caso do texto de Eduardo Almeida e Vinicius Zaparoli: “Porque é correto apoiar a luta dos bombeiros” (disponível no site do PSTU). Esse texto procura, a seu modo, distinguir os diversos elementos das forças armadas. Para isso, se vale da seguinte citação de Trotsky: “Essa pequena minoria era composta de elementos qualificados das Forças Armadas: oficiais, cadetes militares, militares da tropa de choque e, talvez, também cossacos. Esses elementos não podiam ser conquistados politicamente: era necessário derrotá-los”. Edu e Zaparoli criticam “como um erro grave” uma posição da LER que diferencia a composição do exército, composto por soldados não profissionais, da composição das polícias. Afirmam também: “Existem dois tipos de forças armadas profissionais. Um tipo inclui tropas altamente remuneradas e privilegiadas, que formam exércitos praticamente impossíveis de dividir. A Guarda Nacional de Somosa era um exemplo disso, assim como a Brigada Khamis dirigida pelo filho de Kadafi. Outro tipo, completamente diferente, é o das forças armadas de salários baixos, oriundos da classe trabalhadora, que podem ser divididos pela luta de classes”.

Esse texto assemelha o exército às polícias militares, em função dos baixos salários dos soldados de ambas as tropas. Realmente, essa semelhança salarial é um elemento importante, mas não o mais importante. Diferente das PMs, os soldados do exército não são profissionais, o que faz uma enorme diferença. Os soldados PMs são profissionais, o que implica numa carreira a preservar, numa prática cotidiana de repressão aos trabalhadores e de corrupção policial. Sobre isso, Trotsky afirma: “O operário que se torna policial a serviço do Estado capitalista é um policial burguês e não operário” (A revolução alemã e a burocracia estalinista). Edu utiliza o argumento dos salários baixos e da origem social dos soldados PMs como justificativa para o apoio às polícias como um todo. Todo o aparato repressivo seria “disputável”. Não é verdade que pretenda dividi-lo, mas apoiá-lo de conjunto. Não por acaso, menciona as polícias de Somoza e de Kadafi como impossíveis de serem divididas, mas esquece das instituições que nos interessam diretamente, como a polícia federal e as polícias civis brasileiras, que também são tropas de elite. Assim, a sua política se orienta no sentido não de dividir, mas de ganhar as forças armadas de burguesia, inclusive, as polícias.

Uma estratégia reformista
O discurso de divisão das forças armadas é uma cortina de fumaça que esconde uma estratégia reformista: a democratização das polícias, o seu controle pelos trabalhadores, como se isso fosse possível dentro do capitalismo. Diz que os bolcheviques sempre tiveram “o objetivo de dividir as forças armadas burguesas antes da insurreição” e que apostar na sua divisão apenas no momento da insurreição seria espontaneismo. Não é verdade. A política bolchevique dizia respeito apenas ao exército em época de guerra. Eram principalmente os camponeses em armas. Isso nada tem a ver com a proposta oportunista de divisão das polícias, incluídas as tropas de elite, tratadas implicitamente como setores da burguesia “progressista”.

O argumento de que os bolcheviques realizaram um trabalho prévio nas forças armadas é uma meia verdade. Um partido de massas podia realizá-lo, o que daria frutos no futuro. O proletariado somente pode dividir as forças armadas, quebrar a sua hierarquia, quando luta como classe pelo poder. Antes de dividir o exército deve criar a sua própria milícia. É radicalmente falso que se possa dividi-lo fora do período revolucionário, muito menos as polícias, e ainda pelo trabalho sindical. Essa é a visão reformista. “Durante a revolução, ocorrerão no exército oscilações inevitáveis, uma luta interna se travará dentro dele. Mesmo as frações mais avançadas não passarão aberta e ativamente para o lado do proletariado até que vejam, com seus próprios olhos, que os operários querem bater-se e são capazes de vencer” (Trotsky – Aonde Vai a França). A indisciplina militar é o sintoma mais evidente da proximidade da revolução e não se mantém por longo período. Esse conflito deve ser resolvido rapidamente. Somente revisionistas empedernidos podem apostar na conquista gradativa das forças armadas. Conquistá-las no processo revolucionário não é espontaneismo, como afirma o texto. Sem um partido revolucionário, torna-se impossível.

É verdade que a III Internacional, como diz o texto, como condição para adesão de um partido a ela, afirma: “o dever de propagar as idéias comunistas implica a necessidade absoluta de conduzir uma propaganda e uma agitação sistemática e permanente entre as tropas”. E para esses soldados do exército propunha um programa democrático sindical: “elevação dos soldos; melhoria da alimentação; abolição das penas disciplinares”. Mas esse programa era proposto como um método revolucionário, para opor os soldados à oficialidade e ao Estado. Visava preparar a insurreição e não democratizar o exército. O programa revolucionário não exclui o programa mínimo, embora o último seja insuficiente: “L’Humanité (jornal do PC francês) concentra-se nas ‘reivindicações imediatas’ dos soldados: isso é necessário, mas não é sequer uma centésima parte do programa. (...) É preciso divulgá-lo no país – o programa do socialismo – audaciosamente, e por mil canais ele penetrará no exército” (Aonde Vai a França). O reformismo transforma as reivindicações democráticas num fim em si mesmo. Esse programa não se aplica às forças armadas como um todo, menos ainda às polícias. Toda reivindicação deve ter um critério de classe, dirigir-se ao proletariado em armas, o que não é o caso das polícias, nem sequer dos soldados PMs de baixos salários. 

As greves policiais
Não se resolvem questões complexas com receitas sumárias do tipo: “não se pode apoiar nenhuma greve do aparato repressivo do Estado”. O texto do PSTU admite que um soldado não é um trabalhador, mas partilharia as mesmas condições sociais com esse: “Evidentemente os policiais não são parte do proletariado, e trabalham em uma instituição repressiva do Estado burguês, uma superestrutura à serviço da classe dominante. Entretanto, essa é só uma parte da realidade. A outra parte é que, por serem recrutados no proletariado, os policiais também vendem a sua força de trabalho e sofrem a péssima qualidade de vida como qualquer outro trabalhador, pois recebem baixos salários, pegam ônibus e metrôs lotados, moram nas periferias”. Realmente, essas condições sociais dos soldados PMs – e não dos policiais como um todo, como sugere o texto – são as mesmas do proletariado, mas não os transformam em uma espécie de semi-proletários. Os mesmos estão unidos à sua corporação pela disciplina e pela carreira. São policiais burgueses, apesar da sua origem e condição social. Não são potenciais aliados do proletariado em armas, como seria o caso dos soldados de um exército de massas.

Apesar disso, a sua situação social, com freqüência, os coloca em rota de colisão sindical com o Estado, inclusive setores da elite policial. O proletariado não pode se iludir como também não pode ignorar esse fenômeno, que deve ser considerado como um aspecto das divisões da classe dominante e da pequena burguesia com uniforme policial. Devemos tentar tirar proveito dessas divisões, como propõe Lênin no Doença Infantil do Comunismo. Sobre isso, não existe uma regra prévia. Apenas uma análise da realidade pode nos indicar o caminho. São possíveis acordos práticos circunstanciais, restritos ao princípio leninista de “golpear juntos e marchar separados”.

Assim como é um crime apoiar por princípio qualquer greve policial, também o é não tirar proveito eventual delas. Por exemplo: na greve dos bombeiros devemos denunciar duramente a repressão policial e, nesse sentido, prestar solidariedade aos grevistas, o que é uma espécie de apoio à ela, embora não a todas as suas reivindicações. Os bombeiros são uma corporação particular. Mesmo sendo formalmente parte das PMs, a repressão não é a sua função principal, embora alguns dos seus componentes sejam recrutados por ela. Não são uma instituição de trabalhadores, mas se diferenciam muito das polícias. Para certos efeitos, essas diferenças devem ser consideradas.

Outra coisa completamente diferente é o apoio acrítico e oportunista dado pelo PSTU e pela CSP-Conlutas à greve dos bombeiros do Rio de Janeiro, com slogans do tipo “somos todos bombeiros”. Esse tipo de “apoio” em nada ajuda a esclarecer a consciência dos trabalhadores, mas a obscurece. Procura “disputar” os bombeiros com bajulações e não os defendendo contra os métodos repressivos que posteriormente serão aplicados contra o proletariado. Esse oportunismo não se combate com a caracterização abstrata de “greve reacionária dos bombeiros”, como faz a LER e LBI.

Por outro lado, os policiais são parte do funcionalismo público, com quem têm muitas reivindicações comuns. Um exemplo disso é o pacotaço neoliberal de Tarso Genro, no Rio Grande do Sul, que acaba com a previdência pública. Os professores somente teriam a ganhar se os funcionários do DETRAN, da polícia e do judiciário entrassem ao mesmo tempo em greve contra o pacote. Nessa hipótese, seria ou não justo organizar um ato unificado e acordar a unificação das datas do movimento? Não se trata de apoiar a polícia no seu papel repressivo, mas de uma frente de ação contra um inimigo comum, mesmo que para a polícia o “inimigo” seja circunstancial. Os representantes do proletariado devem analisar criteriosamente a situação para definir uma política adequada a cada caso, preservando a independência política e utilizando a seu favor os conflitos do Estado burguês. A política revolucionária não reconhece apenas o preto e o branco, mas também o cinza e as outras cores.

*Este artigo está publicado originalmente em: https://www.lutamarxista.org