Dilemas e perspectivas da Comissão da Verdade

21/09/2013 09:51
Por Homero de Oliveira Costa, prof. Departamento de Ciências Sociais da UFRN (homero-costa@uol.com.br).

                                                             “A única luta que se perde é a que se abandona.”

No dia 18 de novembro de 2011, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei n. 12.528 que criou a Comissão da Verdade e quase seis meses depois, em 16 de maio de 2012, foi constituída a comissão, com sete integrantes e um prazo de dois anos para apresentar um relatório. As Comissões da Verdade, como diz um documento preparado pelo Núcleo de Preservação da Memória Política (SP) “são mecanismos oficiais de apuração de abusos e violações dos Direitos Humanos e vêm sendo amplamente utilizadas no mundo como uma forma de esclarecer o passado, mais especificamente quanto à repressão política”. Nos últimos trinta anos diversos países que viveram sob ditaduras formaram comissões (com nomes diferentes), entre eles Gana, Filipinas, África do Sul, Panamá, El Salvador, Timor Leste e na América do Sul, Peru, Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Equador e Argentina. O Brasil foi o último.  Algumas das comissões foram revogadas, outras não funcionaram e das que funcionaram pode-se citar o caso da Argentina. No final de outubro de 2012, por exemplo, foram condenados à prisão perpétua 12 torturadores que atuaram no regime militar. Outros quatro receberam penas de 18 a 25 anos e os trabalhos não foram concluídos: ainda há muitos torturadores por julgar. No livro “Poder e desaparecimento” (Editora Boitempo, 2013), Pilar Calveiro, analisa a ditadura argentina, inclusive a criação de campos de concentração (e seu significado político) e mostra a importância do resgate da memória e de uma história que “não pode e nem deve ser relegada ao esquecimento” e cujos efeitos foram muito além do fim do governo militar. Para ela “O mero fato de que os comandantes-todo-poderosos, que se consideravam deuses, tenham tido de responder em julgamento, no qual sequer apareceram como grandes assassinos, e sim como uma corja de burocratas, medíocres, bandidos e vigaristas, foi um golpe extraordinário contra aquela aura de onipotência”.

No caso do Brasil, seu funcionamento prioriza escutar as vítimas de arbitrariedades cometidas entre l946 a 1988 e também a versão dos perpetradores dessas violências. São órgãos temporários de assessoramento a governos e oficialmente investidas de poderes para identificar e reconhecer todos os fatos ocorridos e as pessoas que participaram desse processo.

O primeiro objetivo de uma Comissão da Verdade, portanto, é descobrir, esclarecer e reconhecer abusos do passado.

Dando voz às vítimas e algozes, fazer um levantamento documental do que ocorreu e possibilitar um conhecimento mais apurado da História da repressão política nos pais.

Além de sete integrantes, a Comissão conta 13 Grupos de Trabalho, com vários pesquisadores (GT Operação Condor, Araguaia, Mortos e Desaparecidos, Ditadura e Gênero etc.).

Um ano depois de formada, mais precisamente no dia 21 de maio de 2013, A Comissão apresentou um relatório (parcial) de suas atividades. Foi informada, entre outras coisas, a coleta de 268 depoimentos, sendo 37 de militares envolvidos nas violações, 24 militares que foram vítimas e 207 vítimas civis e testemunhas. Foram localizadas 66 caixas no Ministério das Relações Exteriores da Argentina, com informações sobre o país durante a ditadura militar (relatório está disponível no site da comissão: www.cnv.gov.br).

Apesar do trabalho realizado, a comissão tem enfrentados problemas, tanto internamente (um dos seus mais ativos integrantes, Claudio Teles, saiu da comissão) quanto externamente: desde o seu início, tem sido criticada, tanto pela direita (militares, seus aliados na imprensa etc.) como pela esquerda. Há pouco, foi divulgada uma Carta Aberta à Comissão da Verdade assinada por familiares de mortos e desaparecidos políticos, ex-prisioneiros políticos, entidades, movimentos da luta pela Verdade e Justiça e militantes dos direitos humanos, na qual externaram a indignação “com os graves acontecimentos que envolvem a Comissão Nacional da Verdade”, como a falta de unidade e morosidade, cobrando um plano mínimo de trabalho, com objetivos e metodologia definidos, enfatizando a necessidade de investigar a estrutura de repressão, convocando os agentes do Estado responsáveis pelos crimes de torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados. Para eles, a divulgação do relatório parcial “demonstrou desconhecimento das informações acumuladas, ao longo de mais de 40 anos, pelos envolvidos na luta pelo resgate da memória e da verdade histórica”. E propõe entre outras coisas, que o foco das investigações seja o esclarecimento dos casos dos mortos e desaparecidos políticos, e que garanta a abertura total dos arquivos dos órgãos de repressão e informação da ditadura, tanto a nível federal como estadual.

Outro questionamento é quanto à lei da anistia (n. 6.683/79) e que ainda provoca discussões. Há pelo menos dois Projetos de Lei, um na Câmara dos Deputados, por iniciativa da dep. Luiza Erundina (PSB/SP) e outro no Senado, de iniciativa do senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), ambos propondo a exclusão do rol de crimes anistiados os cometidos por agentes públicos ou civis contra pessoas que efetivamente (ou supostamente) cometeram crimes políticos.

Em relação à lei da anistia, numa audiência pública realizada pela Subcomissão Permanente Memória, Verdade e Justiça do Senado, Claudio Teles, ex-procurador da República e ex-integrante da Comissão da Verdade, fez críticas à lei de anistia – que considera inconstitucional, salientando que até hoje o STF – que ratificou a lei de anistia em 2010 - não julgou os embargos declaratórios (recursos utilizados para esclarecer uma decisão judicial, quando nela houver omissão, contradição ou obscuridade).

Carolina Bauer, autora do livro “Brasil e Argentina: Ditaduras, Desaparecimentos e Políticas de Memória” (Porto Alegre, Editora Medianiz, 2013) no artigo “Quanta verdade o Brasil suportará?” (Carta Maior, 15/05/2013) ao analisar o trabalho da Comissão Nacional da Verdade diz: “Não se pode negar que muitas questões relativas à temática mudaram no último ano. Caso os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade não surpreendam, ou frustrem as expectativas de que relato ficará para a história brasileira do período da ditadura civil-militar, seu trabalho deixaram frutos: a criação de comitês regionais e comissões setoriais da verdade. Isto significa que muitos setores da sociedade incorporaram a demanda por memória, verdade e justiça, e seguiram seus trabalhos independentemente dos resultados apresentados pela Comissão Nacional. Mas, mais do que isso, fomentou a participação da sociedade civil no processo, fundamental para o reconhecimento dos sujeitos como autores da sua própria história”. Numa entrevista no mesmo site, ao se referir à anistia diz: “Especificamente com a anistia, o que considero muito interessante para entender essa questão da conciliação que aparece muito nas falas em defesa da anistia até hoje, é esse mito de que a anistia veio com a ideia de reconciliar os dois lados. A prática da reconciliação, apesar de ser muito válida, não pressupõe esquecimento. Quando você tem esquecimento, não consegue uma verdadeira reconciliação. A anistia propiciou não uma verdadeira reconciliação, mas sim criou um mito, uma ideologia da reconciliação, onde o melhor para a sociedade brasileira seria seguir adiante e esquecer o que aconteceu sem nenhum tipo de avaliação daquilo que foi feito. E foi exatamente isso que aconteceu com a anistia no Brasil. Ao invés dela propiciar um perdão penal, ela veio acompanhada de um elemento extra que foi a construção do esquecimento. A anistia não tem absolutamente nada a ver com não conhecer, com esquecer.”.

Como não haverá julgamento no sentido criminal dos violadores dos direitos humanos (a comissão não tem caráter jurisdicional ou persecutório) e, portanto, não poderá declará-los culpados ou inocentes, pode-se indagar em que medida é válido o trabalho da Comissão e quais são suas perspectivas. A meu juízo, em que pesem todos os problemas internos da Comissão e as críticas quanto aos seus trabalhos, não há dúvida, como salientou Carolina Bauer, sobre a sua importância para, pelo menos, esclarecer os fatos, identificar e tornar público quem foram os violadores dos direitos humanos, as estruturas, os locais e as circunstâncias em que muitos crimes foram cometidos.  Só isso já justificaria sua formação.  A perspectiva é, portanto, que os trabalhos continuem e possa no final, esclarecer e reconhecer os abusos do passado, dando vozes às vítimas e algozes, fazer um levantamento documental do que ocorreu e possibilitar um conhecimento mais apurado da história da repressão política no país.

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