Critério

15/12/2012 14:29
Luís Fernando Veríssimo*

Os náufragos de um transatlântico, dentro de um barco salva-vidas perdido em alto-mar, tinham comido as últimas bolachas e contemplavam a antropofagia como único meio de sobrevivência. 
-Mulheres primeiro - propôs um cavalheiro. 
A proposta foi rebatida com veemência pelas mulheres. Mas estava posta a questão: que critério usar para decidir quem seria sacrificado primeiro para que os outros não morressem de fome? 
-Primeiro os mais velhos - sugeriu um jovem. 
Os mais velhos imediatamente se reuniram num protesto. Falta de respeito! 
-É mesmo - disse um - somos difícies de mastigar.
-Por que não os mais jovens, sempre tão dispostos aos gestos nobres? 
-Somos, teoricamente, os que têm mais tempo para viver - disse um jovem. 
-E vocês precisarão da nossa força nos remos e dos nossos olhos para avistar a terra - disse outro. 
-Então os mais gordos e apetitosos. 
-Injustiça! - gritou um gordo. - Temos mais calorias acumuladas e, portanto, mais probabilidade de sobreviver de forma natural do que os outros. 
-Os mais magros? 
-Nem pensem nisso - disse um magro, em nome dos demais. 
-Somos pouco nutritivos. 
-Os mais contemplativos e líricos? 
-E quem entreterá vocês com histórias e versos enquanto o salvamento não chega? - perguntou um poeta. 
-Os mais metafísicos? 
-Não esqueçam que só nós temos um canal aberto para lá - disse um metafísico, apontando para o alto - e que pode se tornar vital, se nada mais der certo. 
Era um dilema. 
É preciso dizer que esta discussão se dava num canto do barco salva-vidas, ocupado pelo pequeno grupo de passageiros de primeira classe do transatlântico, sob os olhares dos passageiros de segunda e terceira classes, que ocupavam todo o resto da embarcação e não diziam nada. Até que um deles perdeu a paciência e, já que a fome era grande, inquiriu: 
-Cumé? 
Recebeu olhares de censura da primeira classe. Mas como estavam todos, literalmente, no mesmo barco, também recebeu uma explicação. 
-Estamos indecisos sobre que critério utilizar. 
-Pois eu tenho um critério - disse o passageiro de segunda. 
-Qual é? 
-Primeiro os indecisos. 
Esta proposta causou um rebuliço na primeira classe acuada. Um dos seus teóricos levantou-se e pediu: 
-Não vamos ideologizar a questão, pessoal! 
Em seguida levantou-se um ajudante de maquinista e pediu calma. Queria falar. 
-Náufragas e náufragos - começou - Neste barco só existe uma divisão real, e é a única que conta quando a situação chega a este ponto. Não é entre velhos e jovens, gordos e magros, poetas e atletas, crentes e ateus... É entre minoria e maioria. 
E, apontando para a primeira classe, gritou: 
-Vamos comer a minoria! 
Novo rebuliço. Protestos. Revanchismo, não! Mas a maioria avançou sobre a minoria. A primeira não era primeira em tudo? Pois seria a primeira no sacrifício. 
Não podiam comer toda a primeira classe, indiscriminadamente, no entanto. Ainda precisava haver critérios. Foi quando se lembraram de chamar o Natalino. O chefe da cozinha do transatlântico. 
E o Natalino pôs-se a examinar as provisões, apertando uma perna aqui, uma costela ali, com a empáfia de quem sabia que era o único indispensável a bordo. 
O fim desta pequena história admonitória é que, com toda agitação, o barco salva-vidas virou e todos, sem distinção de classes, foram devorados pelos tubarões. Que como se sabe, não têm nenhum critério.

*Luís Fernando Veríssimo é um dos mais criativos autores brasileiros. Dentre outras grandes figuras, é o responsável pelo Ed Mort, Velhinha de Taubaté e o originalíssimo Analista de Bagé.

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