A pós-moderníssima narrativa de Carro Velho, o prefeito de Quixeramobim

28/09/2015 05:15

Por Landim Neto* Circula pelas redes sociais um vídeo onde "Carro Velho", apresentado como prefeito de Quixeramobim, interior do Ceará, faz um discurso que, regra geral, tem sido visto apenas como uma engraçadíssima peça de humor. Veja o vídeo abaixo. Mas será que a fala do atípico prefeito assenta-se somente na comicidade?

Pois bem. Mais abaixo, faremos breve análise da fala do prefeito. Antes, relembremos superficialmente algumas questões. 

Grosso modo, o movimento modernista surgido com mais vigor a partir da primeira metade do século XX teve como pressuposto básico o sentimento de que era preciso superar ou ultrapassar as formas ditas tradicionais, fosse nas artes plásticas, literatura ou outras manifestações artístico-culturais. É desse período as famosas "Vanguardas Europeias", que vieram para sacudir e intensificar esse momento de inovações, com propostas que remetiam inclusive à ideia mesma de destruição de valores estéticos de épocas passadas.

No Brasil, essa aura de mudanças teve grande repercussão. Com a Semana de 22, um grupo de intelectuais e artistas buscou também dar um novo viés à cultura nacional. Especificamente na Literatura, a tese predominante era de derrubada da retórica e dos valores estéticos parnasianos, em particular de suas herméticas receitas de uso da linguagem.

Com isso, por exemplo na poesia, passou-se a introduzir o coloquialismo da fala, isto é, diálogos, neologismos, blague... Enfim, um horror aos "Deuses do Parnaso". É de Oswald de Andrade, um emérito modernista, o poema:

O gramático
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou.

O que é mesmo sipantarrou?

Voltando ao discurso do nosso prefeito, um breve mas atencioso olhar sobre seu texto indica que trata-se não somente de uma ótima peça de humor (o que já não é pouca coisa, do ponto de vista retórico), mas também de uma, digamos, reinvenção do vernáculo, isto é, do idioma próprio do nosso país. 

"Carro Velho", assim, vai muito além dos modernistas pós 22 e, não apenas e simplesmente, cria novas palavras para o Português, tal como Oswald, Guimarães Rosa e tantos outros fizeram. Ele, num tom claramente vanguardista, inventa novos significados para palavras já existentes e faz sofisticadas associações de ideias entre as mesmas. 

Além disso, produz imagens futuristas e expõe um texto lucidamente claro, embora possa parecer convulsivo para os menos atentos. E ainda usa e abusa da sintaxe tradicional, contrariando-a radical e rebeldemente por um lado, ou conferindo à mesma um tom artístico, por outro. Pode-se dizer, assim, que a narrativa, retórica e estética carrovelheanas são pós modernistas, no sentido mais estrito do termo.

A título de exemplificação, algumas passagens

Primeiro, é preciso observar que a estratégia argumentativa adotada por "Carro Velho" não é centrada especificamente em nenhum dos clássicos elementos da comunicação, tais como emissor, receptor, canal etc. Por si só isto já é uma certa inovação. A narrativa, embora na prática e de forma subliminar esteja voltada para a própria mensagem, também passeia por outros elementos, de forma mais acentuada por um dos referentes, o nobre radialista Carlinhos Elói, que vira uma espécie de personagem e sai do mundo concreto para o da ficção. 

Quanto a isso, para enaltecer seu referente, a narrativa elogiosa não economiza na criação de novas e inventivas palavras, como cabriocárica,  mediocrático, retombante e rélpis. O que seria uma pessoa com tais características? Ora, o contexto do discurso explica: pessoa boa, inteligente, elevada, bonita, corajosa, honesta, carismática, atraente... Uma espécie, enfim, de Super Herói a la Jean Baptiste Grenouille após desenvolver o seu milagroso perfume. Ou seja, não apenas novas palavras são criadas. É também atribuído a elas os seus significados devidos.

A novidade e o vigor estilístico de "Carro Velho", contudo, não param por aí. Ele vai mais longe e cria novos sentidos para palavras já existentes. O que seria uma pessoa inoxidável? Ele mesmo responde: "uma pessoa brilhante". Inoxidável, como se sabe, é algo que não pode oxidar, ou seja, num sentido geral, que não enferruja, não envelhece. E brilhante é algo pomposo, que brilha. Aqui há a associação entre a ideia de não envelhecer com a ideia de brilhar. Com isso, a narrativa, de forma mais sofisticada e sutil, aprimora o significado de uma palavra (inoxidável) para avançar na caracterização de que a personagem Carlinhos Elói é de fato uma pessoa rélpis, ou seja, uma pessoa eterna (tal como os super heróis, que não envelhecem), e de luz.

E o que seria uma pessoa batráquio? A princípio, poderia remeter a alguém "feio", vez que batráquio refere-se a sapos e estes, na cultura popular, são tidos como não belos. No entanto, ao associar o termo à figura de sua personagem, a narrativa confere a esse termo um novo significado, semelhante ao de, por exemplo, pessoa estrambólica, pessoa rélpis ou pessoa cabriocárica, isto é, pessoa linda. Do ponto de vista retórico-semântico, quem fez antes tão inventivas e audaciosas associações?

A narrativa continua e expõe muito mais ainda da poderosa verve pós modernista carrovelheana. Em: "pessoa estrogonoficamente sensível" ele se supera nos elogios que faz a outra personagem, Miguel Balbino. Para tanto, utiliza a palavra "estrogonofe" (do inglês Stroganoff), uma espécie de comida. Da mesma, retira a vogal final (e) e acrescenta outra parte (fica)  mais o sufixo menteformando um novo vocábulo. Com isso, produz uma espetacular espécie de sinestesia que suscita a sensação gustativa de que o querido amigo Balbino, de tão rélpis, mediocrático e cabriocárica que também é, merece ser degustado, isto é, saboreado, pela população. Lembram do desfecho de Perfume, onde o mesmo Grenouille foi literalmente comido pela povo? 

Os apelos retóricos inovadores de "Carro Velho", intertextuais ou não, estão também claramente expostos em: "uma pessoa que merece o respeito tecnológico", e "programa aerocoptalizado", onde cria também neologismo e imagens que remetem à ideia de avanços do mundo moderno e dos movimentos e relações de convivência que devem (ou deveriam) ser estabelecidas entre as pessoas a partir disso. Ou seja, "Carro Velho" põe que em prática a tentativa do futurista italiano Marinetti feita no início do século XX de reproduzir o movimento das imagens através das palavras.

Aos que, certamente por ignorância e preconceito, só enxergam "Carro Velho" pelos supostos "erros" de Português que "comete", cuidado! Nosso mestre, embora recorrentemente despreze a sintaxe da língua padrão, utiliza sua narrativa muitas vezes para induzir desavisados a fazer críticas sem qualquer fundamento. 

Quando ele diz, por exemplo, que Carlinhos Elói é "pessoa subjestivamente qualificado", incautos e puristas podem enxergar aí um gravíssimo erro de concordância nominal, vez que "pessoa" é palavra do gênero feminino e "qualificado", do masculino. Mas o que faz "Carro Velho" é só recorrer a uma figura de linguagem (silepse de gênero) para fortalecer o centro explícito de seu foco narrativo, o radialista-personagem, que pertence ao mundo masculino e não ao feminino. 

Ou seja, como grandes mestres vanguardistas da Literatura, ele opta pela concordância ideológica e não meramente pela velha e ditatorial gramática normativa. Na prática, ele simplesmente desconsidera que exista um ditador de regras gramaticais a seguir. Até nisso se comprova o caráter rebelde, inovador e literário de seus discursos.

"Carro Velho", o genial filho da bela Quixeramobim, não deve ir para a Academia Brasileira de Letras. Um centro que aceita um Zé Sarney não está à altura de recebê-lo. Mas bem que poderia ser convidado para dar palestras em universidades, em particular nas áreas de Humanas e Letras. Certamente ajudaria a quebrar o tom monótono e cinzento que quase sempre permeia o espaço acadêmico em nosso país.

*Landim Neto é editor do Dever do Classe  (86) 99801-8868

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