A Eurocatástrofe que se avizinha

11/08/2011 07:53

Entrevista ao economista Marxista *José Martins.

A crise, para Marx, era uma oportunidade, o único momento de desorganização e enfraquecimento do Estado capitalista. Nesta entrevista, o economista José Martins desenvolve o tema da crise, critica os marxistas financeiristas por terem um programa de salvação do capitalismo, demonstra que os EUA continuam a ser o motor econômico do Mundo e que a China não lhes pode fazer frente, prevê ainda uma crise no crédito público de dimensões gigantescas. / Raquel Varela e Renato Guedes

Para Marx, a crise era uma oportunidade. Como explicas isso?

A crise econômica, para Marx, era a única oportunidade de desorganização e enfraquecimento do Estado capitalista. O Estado é uma organização política muito sólida nos momentos em que o capital está a ter sucesso na acumulação, na valorização do capital. A crise econômica enfraquece esse bloco monolítico. A crise revela que a burguesia é incapaz de governar e de decidir pela sociedade o que produzir, como produzir e para quem produzir – as três perguntas essenciais de organização de uma sociedade. Para Marx e Engels, a crise catastrófica é condição necessária para a revolução. Só com a crise geral do capital se abrem os conflitos decisivos entre as diversas fracções burguesas, os conflitos inter-capitalistas e inter-imperialistas. A classe operária não vence a burguesia apenas desmascarando as suas ideias, fato impossível em situações de paz social. Só a crise abre a possibilidade material de a classe operária vencer a guerra social e passar a decidir por ela mesma o que produzir, como produzir e para quem produzir.

A II Guerra Mundial foi uma resposta à crise de 1929 e você escreveu que a invasão do Iraque foi uma saída para a crise de 2000/2001. Consegue ver a intensificação da guerra do Afeganistão por Obama como uma resposta a esta crise?

A economia de guerra é a única que possibilita aos capitalistas a superação de uma crise geral. Acontece que a verdadeira procura agregada do regime capitalista que faz com que se supere uma crise geral é a procura de uma mercadoria muito especial – chamada meios de destruição – e isso foi desenvolvido sobretudo por Rosa Luxemburgo que, além de revolucionária, entendia como ninguém de economia política. O dinheiro dado aos bancos evapora-se na própria circulação, mas o capital gasto pelo Governo em armamento permite recuperar a taxa de acumulação da indústria privada. A indústria de guerra é perfeita para os capitalistas. A partir da indústria produtora de armamentos há um efeito multiplicador de procura efetiva sobre os demais ramos industriais. Todos os setores vão ser atingidos por esses investimentos em armamento. Mas é uma mercadoria que exige um consumo bem particular – são necessários populações humanas e territórios para serem bombardeados. Então, compete ao Estado imperialista fazer uma política externa que permita a realização dessas mercadorias, ou seja, encontrar justificações, como a guerra ao terror. No momento da guerra alcança-se o pleno emprego. A taxa de desemprego na II Guerra Mundial era zero na Alemanha, nos EUA e em Inglaterra. Trocam-se linhas de produção por linhas de destruição. Se fosse possível uma guerra permanente, desapareceriam as crises capitalistas.

François Chesnais e os economistas que dirigem ou têm acordo com as posições da ATTAC – e cuja política é defendida no Le Monde Diplomatique – defendem medidas como a taxação das transações financeiras (taxa Tobin) ou o fim dos off-shores para resolver a crise. O que pensa destas medidas?

Para o marxismo, a crise sempre se inicia como uma crise financeira mas é fundamentalmente uma crise de superprodução de capital. Como tal, essas medidas reformistas de um certo «marxismo bastardo» são, quando muito, uma aspirina para combater um sintoma e não a doença. Aliás, até são tímidas face ao que os Governos estão a fazer. Enquanto os financeiristas da ATTAC defendem a taxa Tobin, a burguesia já nacionalizou bancos e promete nacionalizar indústrias! A burguesia é mais radical na prática do que os nossos «marxistas» na ideia.

Creio que cometem alguns erros de análise básicos. Se for buscar uma estatística da revista Forbes, das 100 maiores empresas do Mundo, 80%, no mínimo, são empresas industriais (Boeing, General Electric, etc.), 15% são empresas comerciais (Walmart, Carrefour, etc.) e 5% são os bancos. É uma tolice teórica e prática dizer que «o capital financeiro domina e abafa o capital industrial». Em segundo lugar, os financeiristas partem do pressuposto de que os «EUA deixaram de ser a grande potência industrial mundial». A «nova potência»? A China! Ora, isso não é verdade. A indústria americana é cada vez a mais poderosa do Mundo. Basta ver os relatórios mensais da FED sobre produção industrial e a capacidade instalada. A produção industrial americana é mais de 3 bilhões [milhões de milhões] de dólares, um terço da produção mundial, 3 vezes maior que a japonesa ou a alemã, 4 vezes a produção industrial da China. O PIB é de 13 bilhões. Segundo, grande parte do que se chama «produção industrial da China» é produção de empresas norte-americanas e de outras partes do Mundo. Então, além desses 3 bilhiões que são a produção interna do território dos EUA, teria que se acrescentar mais uns 20% de produção externa.

Mas também se lê que a China é uma ameaça aos EUA.

O poder econômico dos EUA só aumentou nos últimos anos. O da Europa e do Japão caiu. A China é um país pobre, não desenvolve ciência nem tecnologia. Toda a produção chinesa é feita por empresas globais do Japão, dos EUA, da Europa e até do Brasil. A China é a fábrica do Mundo, como também o são o Vietnan, a Índia. Há 500 milhões de trabalhadores na China. Um brutal exército industrial de reserva globalizado.

Há um ano e meio que escreve nos seus boletins que o risco para o capital é a «armadilha da liquidez» e a «deflação». Na Europa o que sempre se sentiu foi a inflação. Em Dezembro, porém, economistas dos jornais burgueses começaram a falar do mesmo…

A taxa de juros da FED já atingiu um nível (0.25% anual) abaixo do qual não existe mais nada a não ser o vazio da armadilha da liquidez e da deflação. A maior economia do planeta está mergulhada num dilúvio de moeda e num sistema de crédito privado absolutamente travado. Muita moeda e nenhum crédito. Essa situação generaliza-se em todas as economias do sistema mundial. Os bancos não querem emprestar e as empresas não querem pedir empréstimos. Transformam o capital-dinheiro em dinheiro puro e simples. Param de produzir. Para quê produzir se o lucro desapareceu? Esse paradoxo, de um dilúvio de dinheiro e um deserto de crédito, acontece também com o consumo individual. Os consumidores que ainda possuem alguma fonte de rendimentos não desejam endividar-se para novas compras. Por que ocorre a deflação? Porque ocorreu um pouco antes a depressão dos lucros e dos preços de produção.

Se dissermos a um trabalhador que vai haver deflação, ele até pode ficar contente. Significa que os preços vão baixar.

Como dizem os economistas, não há almoços de graça. No processo deflacionário tudo cai: o valor da produção, a produtividade do trabalho, o emprego de operários, a taxa de lucro dos capitalistas, o capital-dinheiro, a taxa de acumulação do capital, os preços de produção, os preços de mercado, as vendas externas e internas e o produto nacional. Não adianta ter uma queda dos preços se os rendimentos individuais cairem mais rapidamente. Tudo cai menos o desemprego e a fome.

Que outros exemplos há de crises de superprodução que se manifestaram com deflação dos preços?

Todas as crises anteriores à de 1929. Esta foi a última em que a deflação alcançou o fundo do poço. Nos ciclos posteriores à II Guerra Mundial, a deflação esteve presente mas pôde ser abafada pelos capitalistas, do mesmo modo que a crise geral. O exemplo da deflação japonesa dos últimos dez anos ilustra este fato.

Deflação e depressão são irmãs gêmeas?

Na ordem inversa. Uma depressão vem sempre acompanhada pela deflação, queda geral do preço de produção e também do preço de mercado.

Nos seus boletins econômicos escreve que a crise vai ser muito maior quando estourar no crédito público, por causa das transferências de dinheiro que estão a ser feitas para os bancos.

A crise do crédito público também é uma manifestação necessária da crise catastrófica. Esses pacotes de resgate são dinheiro que em grande parte não vai retornar ao tesouro. Passam a ser despesas improdutivas e o défice público aumenta. Aumentando o déficit público, a confiança nos papéis do Governo e na moeda começa a cair. O mercado não é tolo. O mercado sabe que se o [Ben] Bernanke [presidente da Reserva Federal dos EUA, ou FED] está a fazer girar a maquininha de impressão de dinheiro, esse dinheiro é sem valor, não tem correspondência produtiva. Estou a falar de uma coisa simples, mas que passa longe da cabeça dos keynesianos e dos financeiristas. Eles acham que o valor-capital é criado no banco central e não nas linhas de produção, no trabalho humano explorado nas fábricas e nas fazendas. Eu diria que a crise do crédito nos EUA vai ser marcada pelo derretimento do dólar, que é a moeda de reserva internacional e pela fuga dos papéis, dos títulos públicos a 10 anos dos EUA. Neste momento, governos e rentistas do Mundo tentam proteger-se adquirindo títulos públicos americanos, particularmente os títulos a 10 anos. Nunca o preço de mercado desses títulos esteve tão elevado como agora e o dólar também que, num primeiro momento, vai valorizar-se frente às demais moedas. E, antes de estourar a crise do crédito público dos EUA, vai estourar na Europa e no Japão. Escrevi um artigo chamado «Eurocatástrofe» onde defendo que a Europa vai ser a primeira dos três grandes a afundar-se na crise do crédito público. Mas a conjuntura atual está a mostrar que os EUA ou o Japão podem perfeitamente desmentir aquela previsão.

Que medidas que podem ajudar os trabalhadores na luta contra o capital?

Estive em Campinas, no Sindicato dos Metalúrgicos, que é a ponta da classe operária brasileira e onde estão a maior parte das empresas multinacionais. A única coisa que lhes disse foi que vão ter que dizer agora aos patrões que um companheiro demitido é uma fábrica ocupada. Os trabalhadores têm que pensar na ocupação das fábricas. Manter a produção sob o controle operário. Mas quem decide o que fazer com estas informações é a classe operária. A revolução é uma obra de milhões e milhões de proletários em todo o Mundo.

Diz que a crise vai manifestar-se de uma forma dura junto da classe trabalhadora com o desemprego massivo. Que lhe parecem as teorias de Robert Kurz, de Holloway, entre outros, que defendem que a própria noção de trabalho deve ser posta em causa?

A realidade da crise vai cuidar de colocar essas teorias no lixo. A classe trabalhadora sempre questionou a noção de valor, a noção do trabalho é subordinada. O trabalho para esses ideólogos é uma generalidade conceptual que lhes permite falar de humanidade sem se falar de classe proletária. Na verdade, essas análises partem do pressuposto – não assumido – do fim das classes sociais, e da ideia de crise estrutural do capitalismo.

István Mészáros, por exemplo, defende essa ideia de crise estrutural.

Ele e muitos outros «marxistas de cátedra», que fazem muito sucesso na academia e entre os intelectuais de classe média. Para o sociólogo húngaro, a crise cíclica e periódica de superprodução de capital não existe mais. Ele diz que o que existe é uma crise estrutural, uma crise permanente, a crise de uma fantasiosa «humanidade» – o capital financeiro, puramente especulativo, ameaçando a «humanidade». Ele nega o carácter da crise como formulado por Marx e Engels. Marx nada mais fez do que procurar o ponto de fractura do sistema. Marx não fez uma anatomia do regime capitalista, mas a sua necrologia. A teoria de Marx é uma teoria da crise, cíclica e periódica. Marx nunca falou de crise estrutural. Isso de crise permanente é uma noção malthusiana de crise, alheia a Marx e a Engels.

Afinal, qual é o carácter desta crise?

É uma crise de superprodução de capital. Estas crises só começaram a acontecer por volta de 1815. São as crises modernas do regime capitalista. Esta actual não é uma crise de crédito ou motivada por subconsumo, que são crises do tipo pré-capitalista, que surgem por insuficiência de uma procura prévia. A crise actual é a crise cíclica e periódica de superprodução de capital de Marx. Para entender isso, temos que saber o que é capital. Então, não se confundirá mais capital com dinheiro, capital com máquina, ou capital com uma mera relação de produção. Temos que entender o capital como o valor em processo, o valor que se procura valorizar através do aumento da exploração da classe operária. Superprodução de capital é exactamente isso, o aumento desmesurado da produtividade da força de trabalho global, dos setores industriais produtivos de mais-valia, lucro e capital. Nesse movimento de busca pelo lucro ou de manutenção de uma taxa média de lucro, o que ocorre é que, contraditoriamente, o capital, superproduzindo, provoca uma queda na taxa de lucro. A superprodução de mercadorias é uma coisa e superprodução de capital é outra, apesar de as duas coisas estarem ligadas. O problema é uma abundância de mercadorias que não podem ser vendidas a uma determinada taxa de lucro. A crise atual é exatamente isso, a tendência para a queda da taxa de lucro que ocorre, repito, não de uma forma de longa duração, mas de uma forma periódica e cíclica. O último período dessa superprodução que tivemos foi em 2000/2001 e que agora se repete com uma intensidade que é, certamente, muito maior que a última.


Por que diz que uma crise de crédito ou de subconsumo são crises pré-capitalistas? Ouvimos nos media que esta é uma crise de crédito ou de subconsumo, em que os trabalhadores não estariam a comprar suficientes mercadorias. O trabalhador no regime capitalista existe para produzir mais-valia, capital. A tendência é que os trabalhadores sejam levados, quase permanentemente, para um subconsumo. Mas não é isso que determina uma crise de superprodução de capital. Recordo-me de uma frase de Lenine, quando diziam que a crise era provocada pelo subconsumo das massas, ele dizia: «Bom, então vocês estão a querer algo diferente do regime actual, do regime capitalista. Enquanto for regime capitalista, os trabalhadores vão estar no subconsumo.»

A primeira manifestação da crise foi, aparentemente, a de uma crise financeira, de crédito…

As crises cíclicas aparecem antes de mais como uma crise de crédito, financeira. A crise tem um ritmo definido, começando na sua esfera mais superficial, mais improdutiva, que é a financeira, depois cai para a esfera produtiva, onde está o verdadeiro motivo da crise, que é a crise industrial, que revela a incapacidade, num determinado momento, de os capitalistas manterem o crescimento da exploração ou da taxa de mais-valia sobre os trabalhadores. Se as ações dos capitalistas, através das políticas económicas e de outras medidas de intervenção do Estado, não derem resultados, a crise industrial vai fundir-se com uma crise agrícola mundial, terceiro e último estágio de uma crise geral. Recentemente, antes dessa crise de agora, a revista The Economist publicou uma matéria que usei num dos meus boletins chamada «Euroáfrica» («Bring out your models», Economist.com, 31 de Julho de 2008). Alguns especialistas da The Economist diziam que pode haver uma escassez radical de alimentos na Europa. E eles estão a falar da Europa rica. Isso em função do choque da crise económica que se aproximava.

Quem são os responsáveis por essa crise?

A burguesia proprietária dos meios de produção, que decide os destinos da produção e da reprodução social. Não estamos a falar de um «bando de judeus» especuladores ou de uns gestores «gananciosos». O que é determinante é a ação industrial da burguesia, a produção desmesurada de mais-valia e de capital.

*José Martins é economista, doutor em economia pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), professor universitário na área de economia política internacional, redactor do boletim Crítica Semanal da Economia, autor de vários livros, entre os quais: A Riqueza do Capital e a Miséria das Nações (1994); Império do Terror – Estados Unidos, ciclos económicos e guerras no início do século XXI (2006).

Entrevista publicada originalmente em: www.criticasemanal.org 

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