A explosiva globalização do exército industrial de reserva

20/08/2011 09:25

 

   
  Vill Gax, enviado por e-mail
   

A explosiva globalização do exército industrial de reserva. 
Se a forma das coisas correspondesse exatamente ao seu conteúdo não haveria necessidade da ciência. Nem da chamada ciência econômica – ou economia política, como a denomina mais corretamente seus inventores ingleses. Por exemplo: qual a diferença entre a forma salário e o seu conteúdo, o valor do trabalho? Sem a resposta correta não se pode saber o que é produtividade. A diferença entre valor e preço de uma mercadoria é o grande mistério da economia política. Essa cinzenta ciência existe para explicar exatamente isso: a origem dos preços, como e por que eles variam. Um trabalho muito difícil. Principalmente para quem Estado, mercado e capital são as entidades mais naturais do mundo.

Nem David Ricardo, o maior dos economistas, conseguiu desenrolar esse imbróglio da origem e variação dos preços. Foi preciso esperar mais alguns anos para que a economia política dos trabalhadores – nome que Marx e Engels davam informalmente ao seu trabalho teórico – ultrapassasse os limites da economia política. E essa atualidade da sua crítica da economia política que permite analisar com seriedade movimentos concretos que estão a ocorrer no mercado mundial. Como as diferenças de salários nas indústrias manufatureiras dos Estados Unidos e de alguns países selecionados do mundo. Vamos a elas.

SALÁRIOS RESIDUAIS
Em 2009, o custo salarial por hora [hourly compensation costs] na indústria dos EUA era de $33.53 dólares. Em outros países, medido também em dólares, a mesma variável apresentava aproximadamente os seguintes níveis:

O custo horário dos salários nas indústrias da China e da Índia são inferiores ao das Filipinas. Não passa de 4% do custo dos EUA. É pouco? O que se pode dizer, além de considerações morais – perfeitamente justas, claro, mas totalmente inúteis – é que esse nível residual frente aos custos salariais norte-americanos, europeus e japoneses é o que mantém a atratividade da economia chinesa para os investimentos diretos externos e a correspondente instalação de milhares de plantas industriais das empresas globais naquele estratégico território de caça do imperialismo.

Porém, se o modelo chinês de “socialismo de mercado” depende fundamentalmente desses investimentos externos em sua indústria, pode-se dizer com segurança que essas diferenças entre os preços do trabalho na China e nos EUA, por exemplo, garantem folgadamente a manutenção do modelo? A primeira vista, sim. Mas só à primeira vista. Imagine o que aconteceria se esses custos aumentassem mais rapidamente na China do que nos EUA. É o que tem acontecido nos últimos anos.

SUPERPOPULAÇÃO ABSOLUTA
Em trabalho recentemente publicado também pelo Bureau of Labour Statistics (BLS) é destacado, com um tom altamente alarmante, que “a taxa de crescimento dos salários horários no setor manufatureiro chinês tem subido de maneira persistente e comparativamente mais rápido. Considere-se que, de 2002 a 2008, os custos horários do trabalho no setor manufatureiro dos Estados Unidos elevaram-se em 19 por cento, enquanto os correspondentes custos na China cresceram 100 por cento.” 1

O objetivo do trabalho é destacar alguns fatores que podem explicar o fato “altamente preocupante” dos custos do trabalho nas manufaturas chinesas terem subido de 57 centavos de dólares, em 2002, para 1.36 dólar em 2008. O primeiro fator listado é a dificuldade de se encontrar na China trabalhadores qualificados em grande número para serem incorporados no oceano de fábricas que aterrissaram naquele território nos últimos quinze ou vinte anos. A limitada oferta de trabalhadores qualificados na economia chinesa já foi também apontada pela Boston Consulting Group (BCG), como visto em nosso boletim anterior.

Mas essa baixa qualificação da força de trabalho deve ser relacionada mais diretamente com a baixa produtividade do trabalhador chinês, como veremos abaixo, e menos diretamente com as recentes elevações salariais. Acontece que nesses países dominados, como China, Brasil, Índia, etc., a forma predominante de valorização do capital é a mais-valia absoluta: prolongamento da jornada de trabalho e pagamento do salário abaixo do valor da força de trabalho. O exército industrial de reserva – e a correspondente lei da população capitalista nestas economias dominadas – é regulado menos pelos periódicos ciclos econômicos e mais pela oferta abundante e em permanência de novos contingentes populacionais – camponeses, indígenas, etc. Predomina a superpopulação absoluta – mais quantidade e menos qualidade da força de trabalho.

É por isso que não faltam apenas trabalhadores qualificados no mercado de trabalho da China. A característica organização do exército industrial de reserva presente em todas economias dominadas (Brasil, Índia, México, etc.) acabou provocando no país mais populoso do mundo uma “inacreditável” falta de trabalhadores no mercado de trabalho:

“Outra razão para a elevação dos custos salariais na China é uma crescente falta de trabalhadores… De uma perspectiva macro, a China, o mais populoso país e com a maior força de trabalho do mundo, parece uma improvável candidata à falta de trabalhadores. De fato, a maior parte da população chinesa (73%) está na faixa de idade considerada em condições de trabalhar, quer dizer, a faixa com pessoas com mais de 15 anos e menos de 65 anos. Por volta do final do ano de 2008, a população empregada na China era de 750 milhões, constituindo 58% do total da população do país… Nas décadas recentes, os empresários se acostumaram a contar com uma oferta aparentemente ilimitada e baratíssima de trabalho. Na virada do milênio, a China tinha uma ampla reserva de trabalhadores, principalmente porque jovens camponeses se deslocavam da agricultura para a indústria pela primeira vez. Notícias de aparecimento de falta de trabalhadores industriais começaram no Delta do Rio das Pérolas, na província de Guandong, por volta de 2003, e desde então se espalharam pelo país… Como resposta à atual falta de trabalhadores, os empresários industriais estão aumentando os salários, melhorando as condições de trabalho, contratando trabalhadores com idade mais elevada, incrementando outros benefícios, fazendo o que podem para atrair operários suficientes. O apertado mercado de trabalho está assim contribuindo para aumentar os custos do trabalho na indústria manufatureira.”2

DIRIGINDO NO ESCURO
Uma regra importante da realidade capitalista é que a produtividade do trabalho é inversamente proporcional à extensão da jornada de trabalho. Nos países dominantes (EUA, EU e Japão), onde predomina a mais-valia relativa – redução relativa da jornada e pagamento do salário justo, quer dizer, necessário à reprodução do trabalhador, a intensificação do trabalho é concentrada e ocupa todos os poros da jornada de trabalho, aumentando a produtividade e, consequentemente, a taxa de mais-valia.

No exército industrial de reserva dessas economias dominantes predomina a superpopulação relativa – menos quantidade e mais qualidade da força de trabalho. Os volumes da oferta e demanda dos trabalhadores são regulados unicamente pelos períodos de expansão e contração dos ciclos econômicos, quer dizer, pelas elevações e quedas periódicas da taxa geral de lucro.

Na China, por outro lado, é muito difícil se exigir aumento da qualificação e, consequentemente, da produtividade, de uma população faminta e estropiada pelas condições de trabalho e de existência, o que tem levado ao fato inédito na história econômica capitalista de uma onda em série de suicídios de trabalhadores nas grandes empresas globais instaladas nas fantasmagóricas plataformas de montagem e exportação espalhadas pelo país.

Essas condições de trabalho socialmente insustentáveis tem preocupado os próprios capitalistas com fábricas instaladas na China, da mesma forma que os governos das economias imperialistas (EUA puxando a fila, como sempre) e obrigado o governo chinês a fazer algumas concessões de “direitos humanos” à população. Mas isso só ajudou a criar mais um fator de agravamento no cálculo dos capitalistas:

“Outra razão para a elevação do custo do trabalho nas manufaturas da China atualmente é a nova lei do contrato de emprego, que começou a vigorar no início de 2008. A lei dá aos trabalhadores o direito a assinar um contrato de trabalho, protege as condições de trabalho, estabelece dia certo de pagamento ao empregado, limita o prolongamento da jornada de trabalho, estabelece pagamento para um esquema compulsório de previdência social dos empregados, e torna muito mais difícil despedir trabalhadores. Esta lei, junto com a lei do salário mínimo, reforça o poder de barganha dos empregados e contribui para a elevação dos salários, principalmente nas fábricas de propriedade estrangeira, onde as autoridades chinesas recentemente estão tolerando greves operárias.”3

Que horror! As autoridades chinesas estão tolerando greves operárias. Falta de trabalhadores, aumento descontrolado de salários e abrupta diminuição da produtividade do trabalho são fenômenos que ocorrem simultaneamente quando são anunciadas, apenas anunciadas, algumas medidas que poderiam indicar uma tentativa de passar da produção da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa. Está aí, como diria Hegel, um salto altamente perigoso. Não se resolve nos aparelhos do partido e do Estado.

A burocracia militarizada de Pequim pode não entender toda a extensão do problema, mas deve saber, pelo menos por instinto de sobrevivência, que a passagem da dominação formal para a dominação real do trabalho ao capital exige mais do que bandas armadas e um Estado policial bem lubrificado. Pelo menos já devem estar sentindo os primeiros sinais precursores do que vem pela frente: um pesado ar de ingovernabilidade rondando a Cidade Proibida e a Praça da Paz Celestial, tal como já se passa com as convulsionadas ditaduras do norte da África e Oriente Médio.

Para avaliar melhor os cenários catastróficos para essa estratégica economia da periferia (e, por extensão, para o restante do sistema) temos que relacionar com mais precisão as diferentes condições econômicas que atualmente envolvem as duas economias siamesas do mercado mundial. De um lado, os EUA, a economia de ponta reguladora do mercado mundial; de outro, a China, com a maior economia de montagem industrial do mundo, o “chão de fábrica do mundo” que está a tremer mais que nunca. Tentaremos essa façanha no próximo boletim. Abraços!

1 Judith Banister e George Cook – “China´s employment and compensation costs in manufacturing trough 2008” [Emprego e custos salariais nas manufaturas chinesas em 2008] – Monthly Labor Review, Março 2011, Washington DC.
2 Judith Banister e George Cook – “China´s employment and compensation costs in manufacturing trough 2008”, idem

 

3 Judith Banister e George Cook – “China´s employment and compensation costs in manufacturing trough 2008”, idem

 

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