O que diz a obra de arte

22/02/2011 15:33

"Não faz muito tempo, li num jovem crítico que a pintura é o meio menos apropriado para se dizer alguma coisa. Ele criticava um pintor, jovem também, que tomara como tema de seus quadros figuras e fatos da vida política brasileira. Quer dizer, o crítico argumentava contra a adoção pelo pintor de uma temática não-pictórica ou extra-pictórica, não sei como ele a definiria.É um ponto de vista e, como não conheço os quadros do referido pintor, não posso dizer se, no caso particular, o crítico tinha ou não razão. Mas o princípio geral sobre que baseava a sua crítica me parece discutível. Se a arte é o meio menos apropriado para dizer alguma coisa, isso significa que a arte não diz nada? É uma tese inaceitável.

Mas não vamos nos valer de uma formulação possivelmente infeliz para atribuir ao crítico o que ele talvez não tenha querido dizer. E não se trata aqui de armar uma discussão pessoal. O que importa é a concepção implícita na tese. Admitamos que seu propósito foi apenas afirmar que a arte não pode cingir-se a uma temática explícita, e essa é uma questão que volta à baila.

Não resta dúvida que o caminho percorrido pela arte nos últimos cem anos tendeu preponderantemente à eliminação do tema, a começar pelo tema literário: as cenas mitológicas, alegóricas ou históricas foram banidas da pintura pelo Impressionismo. O artista se voltou para a realidade objetiva: as paisagens e as cenas da vida moderna. Esse defrontar-se com o presente é um defrontar-se com o devenir: Degas capta os gestos das bailarinas que dançam, Monet capta a luz cambiante da paisagem. É uma pintura onde não há heróis, não há História, não há mitos: o artista elabora as sensações que lhe chegam do mundo que ele vê.

Cézanne sentiu a necessidade de fundar essas sensações em termos permanentes, de criar um novo espaço pictórico como haviam feito os mestres do Renascimento. Mas não um espaço idealizado como o deles: um espaço ambíguo capaz de conter as contradições que a experiência direta lhe revelava - um espaço, por assim dizer, arrancado às coisas. E essa visão da natureza vai gerar o Cubismo que, partindo dela, termina por negá-la: idealiza-a, desarticula os volumes em planos e abre caminho para a abstração geométrica. Surge em seguida Mondrian para quem, na natureza, só há dois ritmos fundamentais - o vertical e o horizontal. O Impressionismo, que negara as formas idealizadas, gera desse modo o seu contrario: Mondrian almoça de costas para a paisagem.

Os retângulos assimetricamente distribuídos do pintor holandês não lembram nem de longe as náiades e odaliscas da pintura acadêmica mas estão, como elas, desligados da experiência cotidiana das pessoas. Há, porém, uma diferença fundamental: Mondrian reduz a expressão de seu idealismo ao sensorialmente percebido.
Por outros caminhos, Kandinsky chega também à eliminação de qualquer referência à realidade objetiva. O primeiro quer exprimir a essência da natureza; o segundo, a espiritualidade do homem. Em ambos está a pressuposição de que a representação das coisas e dos seres é um empecilho à expressão da verdadeira realidade.

Essa atitude ideológica em face do real suscita uma série de questões. Existe uma "verdadeira realidade" ou a realidade é um incessante transformar-se? A essência pode ser apreendida se elimina a aparência? As formas ditas abstratas têm algum significado imanente? E, se têm, é possível articulá-las numa linguagem capaz de exprimir, de modo cada vez mais rico e profundo, as "verdades" subjacentes?

Durante mais de cinqüenta anos os artistas e os teóricos da arte debateram-se com essas questões e, ao que eu saiba, não conseguiram respondê-las. A linguagem das formas abstratas por sua vez - quer seja a mondrianiana quer seja a kandinskiana - não se mostrou capaz daquele enriquecimento. Pelo contrário, no curso das décadas, essa linguagem enveredou por um caminho de progressiva autodestruição. Os representantes mais conseqüentes de ambas as tendências, em sua fase final, voltaram-se para a aplicação prática de suas experiências expressivas: uns no campo da indústria, outros no da terapêutica ou da investigação psicológica.

Agora pergunto: cabe, em nome de qualquer destas tendências, negar ao artista de hoje a busca de uma linguagem referencial? E a busca dessa linguagem implica inevitavelmente o rebaixamento da qualidade artística? Só por mero dogmatismo se poderia garantir que sim.

Vejamos agora a questão sob outro enfoque. Afirmar-se que a arte é o meio menos indicado para dizer alguma coisa implica uma definição da linguagem artística, segundo a qual esta linguagem é um universo fechado que se alimenta exclusivamente de si mesmo. Essa definição aparece como verdadeira se se concebe a linguagem da arte (ou qualquer outra) como um sistema desligado do processo global da história e do espaço social. É certo também que, em determinados períodos e numa considerável parte de sua utilização, a linguagem funciona aparentemente como um sistema fechado.

Digo "aparentemente" porque as raízes da linguagem estão de tal modo mergulhadas na experiência que temos do real que, a rigor, seria impossível dizer onde termina uma e onde começa o outro. Podemos definir o âmbito da linguagem em termos de sistema (elementos, relações, princípios, etc.) mas não em termos de expressão. E a linguagem da arte se empobrece, se academiza, precisamente na medida em que o sistema prepondera sobre a expressão: a linguagem "se fecha". Para exemplificar: quando os impressionistas descobrem a possibilidade de captar a expressão cromática das coisas \expostas à luz do sol rompem os limites do sistema da linguagem pictórica para fazê-la abarcar uma nova dimensão do real, já quando Seurat tenta metodizar a aplicação das descobertas expressivas de seus antecessores, a linguagem se submete ao sistema, em detrimento da expressão. Uma nova ruptura se dá, com Van Gogh, em quem de novo a expressão supera o sistema estabelecido. E esse processo de "ruptura" se verifica mesmo no interior da obra de um mesmo artista, de quadro para quadro, às vezes quase imperceptivelmente, pois é ele o indício de que a linguagem está viva, de que a arte "fala". Noutras palavras: a linguagem pictórica, como qualquer outra, só é linguagem porque é sistema e por isso há nela uma natural tendência a fechar-se em seus limites; por outro lado, ela só é linguagem porque é expressão e por isso há também nela uma tendência natural para romper o sistema. Essa contradição interna, dialética, da linguagem revela sua ligação profunda com o conjunto do processo da realidade. A sua autonomia existe, mas é relativa.

Voltando à tese do crítico: ele não pretende afirmar que a arte não diz nada, mas que ela diz apenas o que está implícito no sistema. E mais, ele considera que esse sistema inclui tudo, ou seja, tudo o que pode ser dito pela linguagem da arte; o mais que se pretenda dizer com essa linguagem "não é arte".

Considero muito compreensível que hoje no Brasil alguns críticos se vejam levados a uma posição como essa. No fundo, se trata de uma posição que busca defender o essencial, depois de um período (se é que já passou) em que os limites do sistema da linguagem artística foram amplamente rompidos e se adotou a atitude de afirmar que a própria linguagem da arte era uma forma de repressão. A partir daí, tudo é expressão e tudo é arte; isto é: nada é expressão e nada é arte.
Não estou aqui para defender a arte como instituição a ser preservada a qualquer preço. Nada é menos (ou deve ser) institucional que a arte. Mas, se se destrói o sistema da linguagem - que não foi criado por decisão de nenhuma autoridade mas por uma necessidade real de expressão e comunicação - e se pretende substituí-lo pela valorização de meras atitudes e especulações arbitrárias, não se ganha nada, não se cria nada, não se ajuda a ninguém Trata-se de uma posição "libertária", de fundo niilista, que confunde os valores e prejudica os verdadeiros artistas.

Há que compreender, porém, que tal fenômeno é produto de uma crise geral da arte contemporânea que se reflete de maneira aguda nos países culturalmente dependentes como o nosso. Creio, no entanto, que a atitude correta em face de tal fenômeno não é a defesa do purismo artístico, já que esse purismo está na raiz mesma da crise. Quando Mondrian e Kandinsky dão as costas à realidade e buscam formas idealizadas para se exprimirem não se tomam os profetas de uma arte futura - como se disse e se repetiu muitas vezes - mas os profetas do fim de uma arte que se nega a exprimir as relações concretas da vida."

FERREIRA GULLAR
(este texto foi integralmente retirado da obra: Sobre Arte, editora Avenir, 1982).